Por Samuel Feldberg
Deveria estar em Israel no momento em que encerro este artigo, mas o Oriente Médio é sempre repleto de surpresas. Após a eliminação do chefe militar do Hizballah em Beirute, algo considerado como uma afronta pelo líder Nasrallah e a espetacular ação que eliminou o líder político do Hamas, Ismail Haniye em plena Teerã, o mundo inteiro prendeu a respiração aguardando uma resposta.
Assumia-se que o Hizballah atacaria alguma grande cidade israelense, tentasse assassinar algum líder do país ou cometesse algum atentado terrorista nos moldes daquele contra a AMIA e que o Irã repetisse algo nos moldes do ataque de 13 de abril, com o lançamento maciço de mísseis e drones.
Israel entrou em estado de alerta, com o governo recomendando à população que se mantivesse próxima de abrigos antiaéreos, afinal, um drone lançado pelos Houthis já havia atingido Tel Aviv e matado um civil.
E as companhias aéreas do mundo inteiro suspenderam seus voos, primeiro ao Líbano e depois a Israel. E foi essa medida que me impediu de levar uma delegação de 14 professores universitários, organizada pela StandWithUs Brasil, que chegaria lá no dia em que os voos foram interrompidos.
Mas nada aconteceu, presumivelmente para não destruir as chances de um acordo, que interessa tanto ao Hamas quanto ao Hizballah.
Agora continua o dilema das negociações infindáveis com acusações de parte a parte. O Hamas, que não participa diretamente, acusa Israel de impor novas condições não previstas na proposta original, especialmente a continuação do controle sobre os eixos de Netzarim e Philadelphi.
O primeiro dividiu a Faixa de Gaza do Mar Mediterrâneo até a fronteira e é considerado fundamental para diminuir a possibilidade de que elementos hostis voltem à fronteira da região conhecida como Otef Aza, onde se concentrou o ataque do 7 de outubro. O outro controla toda a fronteira com o Egito e seu controle é crucial para impedir que o Hamas volte a se armar, seja através da superfície, seja através da manutenção de túneis não destruídos ou a construção de novos, baseado na incompetência / corrupção dos egípcios.
Nesta fronteira com o Egito foram construídos túneis nos quais podem trafegar jipes e veículos de transporte e o seu controle não tem só um valor militar, mas também envolve o que os egípcios consideram um símbolo de sua soberania.
O problema não é novo; Israel teve controle total da fronteira desde a Guerra dos Seis Dias em 1967 e somente a abandonou quando da decisão de retirada unilateral adotada por Sharon em 2005. Naquele momento se discutiu a viabilidade de manter tropas separando a Faixa de Gaza do Egito ou flexibilizar os acordos de paz permitindo o controle por tropas egípcias. Quando esta opção foi adotada, os israelenses abandonaram o território que haviam controlado por 38 anos e na sequência o Hamas se tornou soberano. O primeiro ministro Sharon havia se oposto à retirada, consciente do risco de deixar o controle em mãos dos egípcios (lembrando ainda que era a Autoridade Palestina quem formalmente controlava Gaza naquele momento), mas seus assessores legais alegaram que a manutenção de tropas impediria Israel de declarar que havia se retirado totalmente. Assim, Israel assumiu o ônus militar sem sequer beneficiar-se do bônus diplomático, já que o mundo continuou a acusar o país de controlar o acesso à área.
Ao longo dos anos que se seguiram, os serviços de inteligência de Israel identificaram transferências de quantidades significativas de explosivos, foguetes de longo alcance, mísseis anti-tanque, e equipamentos para a escavação de túneis.
Os túneis começaram a ser construídos logo após a retirada de Israel do Sinai em 1982, no contexto do acordo de paz com o Egito, assinado em 1979. No início visavam evitar o Eixo Philadelphi, controlado por Israel, e ligavam a parte egípcia à parte palestina da cidade de Rafah. Até os Acordos de Oslo em 1993 eram utilizados primordialmente para contrabando comercial, de drogas e, eventualmente, de pessoas. Após 1994, Israel retirou a maior parte das forças militares da Faixa de Gaza, mantendo somente a proteção aos assentamentos e o controle das rotas de locomoção. A Segunda Intifada cobrou um alto preço dos soldados israelenses remanescentes e contribuiu para a decisão da retirada em 2005. E quando o Hamas tomou o poder e expulsou a Autoridade Palestina em 2007, apoderou-se também dos túneis e de todo o esquema de contrabando que já vigorava.
O total controle de Gaza pelo Hamas colocou em ação um amplo esquema de acesso a armas sofisticadas: do Irã através do Golfo Pérsico e do Mar Vermelho, atravessando os desertos do Sudão e do Sinai, até os túneis ou a corrupção egípcia na fronteira. Após a consolidação do Estado Islâmico, surgiu outra rota para a transferência de armamentos, oriundos de fundamentalistas islâmicos na Líbia.
Em 2013 ocorre o único evento que coloca em risco as atividades do Hamas na fronteira. O presidente egípcio, que vê na Irmandade Muçulmana e seus seguidores como o Hamas, uma ameaça existencial, decide criar uma faixa estéril na fronteira e evacua totalmente o lado egípcio da cidade de Rafah. Mas a preocupação do Egito com o fortalecimento do Estado Islâmico na Península do Sinai leva o governo a tolerar o contrabando, em troca da interrupção da colaboração entre os dois grupos terroristas. Adicionalmente, beneficiavam-se financeiramente também os beduínos, habitantes da região, e uma infinidade de oficiais egípcios responsáveis pelo controle.
O suposto controle egípcio tornava o presidente uma peça importante em qualquer negociação, como ficou evidenciado ao longo dos anos, também aos olhos dos norte-americanos e de outros atores regionais, como a Arábia Saudita e a Turquia.
Desde o ataque de 7 de outubro o Eixo Philadelphi se mantém no foco das atenções. Egípcios e norte-americanos se opunham a uma ação israelense na região e a invasão de Gaza, que se iniciou pelo norte, só chegou à cidade de Rafah em 6 de maio. Desde então a área está sob controle israelense e o corredor foi ampliado com a destruição de todas as moradias adjacentes. Agora será necessária a construção de uma barreira profunda que neutralize os túneis remanescentes e impeça a construção de novos e uma ampla colaboração com os egípcios para impedir a renovação do contrabando pela superfície.
Até agora foram identificados mais de 100 túneis e estima-se que ainda haja dezenas que não foram localizados. Para o momento em que as tropas israelenses se retirem, estão sendo articuladas cooperações internacionais, mas nenhum país colocará em risco a vida de seus soldados para impedir terroristas de obterem armas e munições.
Nesta última rodada de negociações, o Eixo Philadelphi se tornou um elemento crítico que remete aos eventos de 40 anos atrás. O ministro da defesa, Galant, alega que Israel deveria se retirar em troca da libertação de parte dos reféns. Netanyahu e seus apoiadores no governo rejeitam totalmente a ideia, alegando que as condições na região, inclusive a posição dos Estados Unidos, não permitiriam o retorno das tropas.
Por ora, não temos respostas. Ficamos na expectativa.
Samuel Feldberg é diretor acadêmico do StandWithUs Brasil, doutor em Ciência Política pela USP, professor de Relações Internacionais, Pesquisador do Centro Moshe Dayan da Universidade de Tel Aviv e fellow em Israel Studies da Universidade de Brandeis.
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